Há muito, muito tempo, uma mulher chorava sozinha na sua pobre casa. Chamava-se Mona, e
chorava porque o seu Paulo tinha ido para a guerra. Fixava por entre lágrimas a foto do
noivo e recordava as dificuldades por que tinha passado.
Fora ela que, numa primeira vez, sorrira para ele. Ela que lhe dirigira a palavra uns
dias mais tarde. Ela ainda que o tinha convidado uns tempos depois a tomar chá na sua
pequena casa. E fora ela que desde sempre tinha andado à procura da receita deste bolo!
Mas tinha valido a pena! Logo à primeira dentada, Paulo olhara para ela e a chama do amor
brilhara no seu olhar!
Importa dizer que não era um bolo qualquer. Não, era um Bolo de Amor cuja receita Mona
tinha encontrado num velho cardápio da biblioteca municipal.
De repente, Mona salta da cadeira.
«Se existem receitas de Bolo de Amor», diz para consigo «também deve haver receitas do
“Bolo que Traz de Volta os Namorados”!»
Num ápice, pega no casaco e no guarda-chuva, e corre para a biblioteca.
Mona passa o dia debruçada sobre livros de cozinha, de magia e até mesmo de feitiçaria,
todos eles cobertos de pó. Mas em nenhum deles encontra a mais pequena receita do “Bolo
que Traz de Volta os Namorados”.
De vez em quando, não muito longe dali, caía uma bomba que fazia estremecer a venerável
biblioteca. Mas Mona não era rapariga para desistir à primeira dificuldade. No dia
seguinte, voltou à biblioteca e, à força de tanto ler e de reflectir, à força de cogitar
e de rabiscar no seu caderno, acaba por inventar uma receita. A receita de um bolo que
talvez pudesse fazer parar a guerra. É verdade. É isso mesmo!
Com a cesta debaixo do braço, Mona sai imediatamente à procura dos catorze ingredientes
necessários para a confecção do seu famoso bolo. Sete deles encontravam-se do lado de cá
da fronteira, portanto não havia problema. Mas os outros sete só cresciam em país inimigo…
Escondidos por detrás das persianas das janelas, os aldeões viram-na pôr-se a caminho. «O
que é que aquela tonta da Mona andará agora a magicar?» diziam eles para os seus botões.
De coração a palpitar, Mona deslizou por debaixo do arame farpado que separava os dois
países. Estava agora em território inimigo. A qualquer momento podia ser presa e metida
na cadeia. Ouviam-se tiros ao longe. A toda a pressa, Mona reuniu os frutos vermelhos, os
grãos e as ervas aromáticas de que precisava.
De repente, apanhou um grande susto: atrás das árvores, uns miúdos, de olhos arregalados
de medo, observavam-na. Muito lentamente, Mona agachou-se.
Mona e as crianças olhavam-se mutuamente e assim se passaram segundos, minutos… e Mona
continuava imóvel, receosa que um qualquer gesto brusco os fizesse fugir. De vez em
quando as crianças trocavam entre si algumas palavras, numa língua que Mona reconhecia
mas não compreendia. A língua dos inimigos. De repente a barriga dos miúdos começou a
fazer barulho. Desta vez, Mona percebeu muito bem o que aquilo queria dizer.
Sorriu e, devagar, muito devagarinho, atirou-lhes as framboesas que acabara de colher. De
framboesa em framboesa, de sorriso em sorriso, Mona trouxe as crianças até à fronteira e,
depois, até à sua pequena casa. Com desenhos e gestos, os pequenos explicaram que os pais
tinham morrido no início da guerra e que desde então só fugiam, fugiam, fugiam… Os
desenhos e os gestos deram lugar às lágrimas. Então Mona tomou-os nos braços, cantou-lhes
uma canção de embalar do seu país e deitou-os na sua larga cama.
No dia seguinte, Mona e os meninos começaram a preparação do bolo.
Os vizinhos observavam-nos, incrédulos. Havia guerra e Mona gastava todas as suas
economias para fazer um bolo! Como se fosse tempo disso! E aquelas crianças, quem seriam?
Donde teriam vindo? Era preciso estar atento!
Mas as dez mãos misturavam os catorze ingredientes do bolo… De vez em quando, uma das
crianças levava o dedo à boca e sorria. As outras imitavam-na e também elas sorriam. Mona
deixou repousar a massa, depois meteu-a no forno a pensar intensamente no seu Paulo.
Passadas três horas, Mona tirou do forno uma coisita preta e enfezada. QUE FRACASSO!
Tinha depositado toda a sua esperança naquele bolo e saíra completamente estragado. Mona
ficou sem forças, incapaz de fazer o menor gesto, de dizer fosse o que fosse. As crianças
deram-‑lhe a mão. Desta vez foram elas a cantar-lhe uma canção de embalar do seu país e a
deitarem-na na cama.
Mas, enquanto dormiam, um estranho perfume começou a fazer cócegas nas narinas dos
miúdos. Por mais que esfregassem o nariz, que se virassem na cama, o perfume entrava nos
pulmões e circulava-lhes pelo corpo. Uma pequenita acabou por acordar. Levantou-se e
arregalou os olhos. Aquela coisita preta e enfezada tinha-se transformado num bolo
verdadeiro! Mas a pequena ainda teve mais surpresas. Na cozinha o bolo inchava, inchava…
Foi a correr sacudir Mona. Enquanto Mona se vestia, o bolo ainda continuava a crescer.
Sem perder um segundo, com a ajuda das crianças, Mona pô-lo em cima de uma carroça e
depois, todos juntos, atravessaram a aldeia. O aroma do bolo espalhava-se pelas ruas,
acordando casas e pessoas.
Mona, as crianças e o bolo saíram da povoação. Atravessaram florestas negras, campos
mortos, ribeiras secas. Aproximaram-se do campo de batalha. Os habitantes da aldeia
seguiam-‑nos, mas vinham muito mais atrás. Não sabiam o quê, exactamente, mas achavam que
algo de muito importante se estava a passar.
O aroma do bolo foi a primeira coisa que os soldados sentiram. De nariz erguido
procuravam descobrir donde vinha aquele perfume tão maravilhoso! Só depois é que viram o
bolo, enorme, majestoso, trazido por uma mulher e quatro crianças que o pousaram no campo
de batalha e se foram embora. Completamente deslumbrados, os soldados olhavam para aquele
bolo que não parava de crescer. «E se fosse uma armadilha?», interrogavam-se eles. Mas
poderia uma armadilha cheirar assim tão bem?
Aqueles combatentes que, há tanto tempo, viviam na barbárie e por entre o barulho
infernal das armas, ficaram de repente com os olhos cobertos de lágrimas como se
estivessem hipnotizados. Levantaram-se e aproximaram-se. Quanto mais avançavam, mais o
bolo expandia o seu aroma. Os mais arrojados tocaram-lhe… /Mmm/, ainda estava quente! Um
soldado arrancou um pedaço e levou-o à boca… /Mmm/, que bom! Não se parecia com nada que
ele algum dia tivesse comido. Tinha um gosto diferente, e ao mesmo tempo, trazia-lhe à
memória os tempos felizes da infância!
Outros soldados comeram dele. De ambos os lados, sem se verem uns aos outros, os soldados
devoravam o bolo de Mona, e pouco a pouco, a raiva e o ódio foram-se afastando deles...
Os soldados comeram o bolo todo. Saciados, descontraídos, olhavam uns para os outros. Uns
sorriam, outros pousavam as armas no chão… Já nem se lembravam da razão que os levara a
combater…
Saindo do esconderijo, Mona foi buscar o seu Paulo.
De todos os lados surgiram mulheres, mães, crianças que, por sua vez, vieram buscar um
marido, um filho ou um pai. Dentro de pouco tempo já não havia ninguém no campo de
batalha. A guerra tinha acabado.
Desde essa época que se come, de ambos os lados da fronteira, um bolo feito com os
sabores dos dois países. E desde então, nos dois lados da fronteira, as pessoas
aprenderam a conhecer-se e a amar-se.
Mona e Paulo adoptaram os miúdos, aquelas crianças que Mona tinha recolhido debaixo de
bombas, e que ela tinha cativado com framboesas e sorrisos.
É por isso que há sempre uma framboesa em cima do Bolo da Paz…
E também é por isso que há sempre um sorriso nos lábios de quem o saboreia…
Didier Lévy
Le gâteau de paix
Paris, Éditions Sarbacane, 2004
(Tradução e adaptação)
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